sábado, 25 de março de 2017

A Ditosa Queda de Um Esnobe

O esnobismo é um fenômeno demasiado recorrente. Ignorá-lo, como se ninguém o praticasse, poderia redundar num resultado quase imperdoável. A ciência do equívoco começa por um desejo emprestado. O titular original dessa vontade é uma pessoa de uma classe social superior ou de um país mais desenvolvido. A hierarquia de classes ou de pátrias, nesta época de igualdades, não existe. No entanto, o esnobe ainda não percebeu que a Revolução Francesa triunfou. E o desejo de parecer mais do que é molda a sua própria identidade, fazendo com que ele seja, de verdade, uma peça de museu ambulante. Faz parte do engano que ele ache viver numa época antiga, em que a hierarquia ainda estava clara.
 
Para entendermos como o que uma pessoa é pode variar segundo suas concepções, é necessário tentar perceber o seguinte. O que o "eu" é depende, nos adultos práticos, do que ele acha que é. A opinião do "eu", por mais falsa que seja, pode ser tida por ele como uma verdade programática, um projeto profissional, uma ambição. Um erro cínico sobre a sociedade de alguns dirigentes nazistas começa por um erro sincero acerca da própria identidade. O indivíduo esnobe precede o indivíduo sacrificial.

Trazendo o assunto para mais perto, podemos constatar que, dentro de casa, tudo pode cheirar a esnobismo. O sujeito pode inclusive, numa mesa de almoço, citar em alemão. A diferença crucial entre o esnobe e o cara normal depende da resposta que se dá à seguinte questão: a ausência de citações tupiniquins é devida a falta de estudiosos que se debruçaram sobre seu assunto específico? Se sim, não há nada de errado, desde que se siga uma tradução. Ser um aristocrata do intelecto traz consigo a necessidade de parecer pelo menos um pouco esnobe ou, como diria um amigo meu plebeu, um intelectualóide.

O problema surge quando o esnobismo é inconsciente, e os convivas, ah, não entendem o que foi dito. No entanto, não há nada que seja tão caricato quanto um esnobe que ainda não passou pela conversão mimética, que faz com que a origem individual do desejo seja colocada à mostra. Isso, obviamente, não salva por si só ninguém, mas torna tudo mais fácil de se entender. Um dos exemplos de esnobismo dado por René Girard em Evolução e Conversão é o da esposa de Marmeladov, personagem de Crime e Castigo. Ela luta por manter as aparências em meio a uma Rússia transbordante de crises existenciais generalizadas, dramáticas, hiperbólicas e verdadeiras. Não se trata só de ausência de dinheiro, mas também de falta de qualquer perspectiva de um trabalho decente. A madrasta de Sônia não sabe o que fazer para manter a família, embora houvesse alternativas mais viáveis que a prostituição.

Nesse aspecto, não podemos, de fato, colocar a girardidade e o idealismo alemão, típico de Kant por exemplo, na mesma sacola. Ainda que em Kant essa atitude não atinja o paroxismo, a ideia de que um elemento da alma teria uma consistência ontológica é próxima demais. Ela carece de uma distância temporal. Quem foi criança um dia sabe que há uma diferença muito grande entre acreditar em Papai Noel e, depois, ser chocado contra a experiência. De repente, tudo se encaixa e é uma maravilha! Estamos com os pés firmes na terra.  Da mesma maneira, há uma distância que separa o inconsciente girardiano daqueles de cunho totalizante. Para o intelectual francês, usando os termos da gnoseologia realista e sem nenhum matiz ético necessário, a inconsciência faz parte de uma ignorância vencível. A condição é que a natureza mimética do desejo seja desmascarada, aceita e bem manejada. Quanto a isso, eu não tenho dúvidas de que René Girard está certo.

Um exemplo belo de passagem do esnobismo à normalidade é o poema muito simpático "The More Loving One" de Auden. Antes de mais nada, é bom afirmar que a inspiração, tal como sugerida por Platão, não é um dado cognoscível. O poeta não entende necessariamente que o cantado é um aspecto da teoria girardiana. O modelo inalcançável de Auden, nessa poesia, é simbolizado pelas estrelas que, infelizmente, não se importam com ele. Aqui embaixo, no entanto, a situação é diferente. Várias pessoas têm um influxo sobre ele. A resposta despertada, no entanto, não é de alegria, mas sim de temor. Será isso por ressentimento? Talvez. O fato é que o último verso da primeira estrofe, terminado antes que os outros, marca o silêncio de um presságio catastrófico.

O poema, porém, segue com uma nota de esperança. Refletindo sobre a possível desaparição de todas as constelações, Auden diz que tampouco daria a mínima. Ele retribui indiferença com indiferença. Mas, como o modelo que pairava alto demais desapareceu, Auden agora já é capaz imitar alguém que lhe é próximo. E ele passa a ser, por sua vez, um modelo acessível.


The More Loving One


Looking up at the stars, I know quite well
That, for all they care, I can go to hell,
But on earth indifference is the least
We have to dread from man or beast.

How should we like it were stars to burn
With a passion for us we could not return?
If equal affection cannot be,
Let the more loving one be me.

Admirer as I think I am
Of stars that do not give a damn,
I cannot, now I see them, say
I missed one terribly all day.

Were all stars to disappear or die,
I should learn to look at an empty sky
And feel its total dark sublime,
Though this might take me a little time.”

domingo, 29 de janeiro de 2017

Filosofia e Vida em Michel Serres



Um dos momentos mais agradáveis na vida é aquele gasto com os amigos. Um dos meios de se cultivar essa planta sem a qual o jardim da existência não teria tanta graça é o contato periódico. Isso, no entanto, pressupõe uma ambiente calmo onde não haja barulho e se possa ouvir as palavras do outro sem problema. Muitas vezes, esses lugares são fáceis de encontrar, mas em localidades onde a guerra aterroriza não. E há alguns que afirmam que a violência está sempre mais próxima do que imaginamos. Talvez não convenha fechar os ouvidos a seus alertas.

Um desses profetas modernos é René Girard. Uma frase impossível de imaginar na boca dele é algo como: a paz reina hoje. Dentro do seu modo de ver, a falsidade com que a ordem é conquistada faz com que a situação seja sempre precária. O sol brilha, o vento sopra suave e as flores desabrocham... mas nós estamos sempre a um triz de nos esgoelar uns aos outros. E sem que haja nenhuma razão para isso. Não é difícil encontrar um exemplo dessa tensão. Outro dia, um rapaz, que ainda não sou digno de chamar de meu amigo, teve que deixar de estudar para ser taxista. Se alguém ainda não acha que isso é uma violência, considere isso: segundo fontes fidedignas, ele teve que abandonar os livros por conta de uma lei que prescreve ser a universidade autônoma. Portanto, um juiz togado não poderia afirmar nada acerca da justiça ou injustiça de um edital aprovado pelo reitor, que é ocupado o suficiente para se equivocar e nem perceber. Em outras palavras, assim como algumas favelas promulgam as suas regras próprias, alguns órgãos públicos ditariam as suas próprias leis.  A diferença que torna a universidade mais atraente é que nela o domínio é mais consensual. De qualquer maneira, esse rapaz, se tem algum sangue nas veias, deve ficar indignado com o absurdo que é a pressuposição que torna indiscutíveis algumas decisões de funcionários públicos. Da última vez em que o vi, porém, ele era como um vulcão ainda adormecido.

Talvez a sua ira nunca irrompa. A ilusão pela qual se considera que nesse caso tudo estaria bem é a seguinte: a decisão é boa. Embora isso não seja nunca o fato, todos fingimos acreditar nessa falácia moral porque do contrário o caos tornaria a vida um inferno. Se o poder não fosse respeitado, não haveria uma instância capaz de dirimir os conflitos que costumam acontecer. A serenidade verdadeira, no entanto, não decorre desse engano. Pelo contrário, o cristianismo mostra que quiçá aquele contra quem a ordem é esgrimida seja inocente. A rigor, o engano é hoje muito mais difícil. Essa revelação tem duas consequências. Por um lado, ela fomenta um desrespeito por tudo o que é só humano. Por outro - e esse parece ser o modo como os santos a entendem - ela é uma ótima teoria que arranca as raízes da violência: a justiça humana pura e simples é necessária, mas há um bem que a ultrapassa e mais do que compensa as suas deficiências. Não há menor desculpa para o ressentimento.

A alma de Michel Serres, que consta já ter sido professor de um curso na USP, parece também um mar calmo e livre de maiores rancores. Ele era amigo de René Girard e, provavelmente, quando a discussão surgia, Serres era quem tinha que se controlar e levar o assunto para lugares mais amenos. Na virada do ano, um jornalista quis saber dele se em 2016 existiu paz na Europa. Não é necessário lembrar o martírio e os ataques terroristas. No entanto, o filósofo, com uma cara de pau muito simpática, diz que sim, a paz reinou em 2016. A explicação é que a sensação de guerra é só uma subjetividade aumentada pela mídia. René Girard tinha um conceito mais extenso da violência. As impressões também têm consequências.

Uma delas está presente na vida do próprio Serres. Quando, por conta de ideologias, a Segunda Guerra estourou, ele era uma criança indefesa que via e retinha tudo. Ele sobreviveu, mas a experiência lhe deixou uma marca. Permaneceu nele um asco por todos os adultos que desprezavam a paz. Essa parte de sua biografia é contada por ele mesmo no livro da entrevista dada a Bruno Latour. O que não está presente de maneira clara lá é como ele resolveu esse impasse, por que caminho interior ele conquistou a vitória, como, afinal de contas, o ódio foi destruído.

Mas, de certo modo, a coisa está latente numa distinção percebida por Serres adulto entre a história da ciência e abordagem histórica na epistemologia. Não é difícil de entender: quando um historiador da ciência estuda o que havia de falso nos antigos, ele desconsidera a relação entre teoria e verdade; quando, porém, um epistemólogo estuda um erro passado, ele faz o juízo de que está errado e busca as condições metodológicas que evitariam o equívoco.

Assim como os desvios dos modelos científicos, o asco contra os mais velhos é também uma espécie de ignorância, embora resida somente numa pessoa. Se ela for considerada apenas sob a perspectiva histórica, não há nada a se aprender. Mas se o matiz epistemológico for acrescentado, percebemos que o erro só existe porque a criança tem que se achar o centro do mundo. Não conhecendo nada, ela não se sente atraída para fora de si. Desde esse ponto de vista limitado, a violência era incompreensível para o pequeno Serres. Não havia a menor explicação para pegar em armas. O modo de evitar a falsa percepção é reconhecer que a melhor posição da inteligência é sobre um monte de onde se contempla que todas as guerras tendem a se aniquilar. Elas são, de fato, baseadas na promessa falsa de uma nova ordem. Aqueles que sobrarem herdarão a terra.

sábado, 21 de janeiro de 2017

O Círculo e o Segmento de Reta




"Talvez seja interessante. Mas eu percebo no seu blogue um certo ranço meio antiquado." 
Um grande idealista dos meios de comunicação e leitor crítico de A Tuba.

Às vezes, as simplificações são inevitáveis. Uma maneira de ver o mundo é o eterno retorno. Em poucas palavras, essa teoria afirma que não só a primavera do ano anterior vai se repetir no próximo, como também várias outras coisas. Um esquema para explicar a história, portanto, seria a roda que, ao girar, sempre volta ao mesmo lugar. Essa é a teoria do círculo. A outra maneira de ver o mundo, nós talvez poderíamos chamá-la de progressismo iluminista. Essa cosmovisão afirma que o esquema para explicar a passagem do tempo é o segmento de reta. No entanto, o desenho só está completo se colocamos vários traços perpendiculares indicando as descontinuidades. Para o adepto desse segundo tipo de pensamento, as diferenças entre as eras seriam tais que não haveria possibilidade de a mais atual aprender com a mais antiga. A tradição radical, portanto, seria algo impossível, e o que há antes do começo da linha - a criação - seria inacessível.

Nós não precisamos ter vergonha de aderir ao círculo. Como reconhecia Marcuse, é impossível não levar as próprias convicções para o trabalho científico. Marx talvez diria o mesmo, mas acrescentaria sem dúvida um erro grosseiro: aquele segundo o qual essas ideias pessoais seriam determinadas pela pertença a uma classe econômica. O cidadão básico, porém, é o indivíduo e o que ele pensou e decidiu sobre o bem comum. Umberto Eco sabia disso e muitos outros também, embora nem todos falem em voz alta. A acusação de possuir uma consciência ideológica é sempre uma boa desculpa para tirar só os indesejados do caminho. Embora a verdade não seja essa, o discurso precisa ser contrário a ideologia porque esse é o disfarce perfeito. Ninguém ousa prender o policial.

O pequeno problema aqui, porém, não é ter uma ideologia, mas sim tê-la a meias. Hitler, por exemplo, não só não era um comunista radical, como tampouco era conservador o suficiente. Hitler era um cara normal e se orgulhava disso, o que é imperdoável. Uma boa maneira de aprender a ser conservador é ser conversador dentro de um ambiente onde reina o bom senso. Numa bate-papo entre aqueles que são gênios demais, é possível contestar o óbvio. Porém, num café da manhã tomado bem cedo, numa dessas famílias felizmente insatisfeitas com a própria situação, ninguém duvida que quem não paga o aluguel em dia fica devendo também os juros. Ao atrasado em questão a sociedade castiga e não se arrepende. Sem isso, de fato, tudo correria o risco de virar um caos.

Mas um conservador sabe que a primeira característica das falhas é serem inevitáveis. Há sempre algum nível de caos com o qual é necessário lidar. Sendo a política, por exemplo, a arte de tornar justo que uns se sintam bem a custa dos outros, o máximo que ela conseguiria é que todos se revezem e suportem a mesma quantidade de trabalho. Essa igualdade, no entanto, não é sempre possível, porque alguns são mais aptos. Dentro desses limites, são necessárias a previdência para os mais idosos e as creches para os mais novos. O mesmo acontece no âmbito do mercado. Se um empregado não produz o suficiente numa dada função, talvez o melhor para todos fosse reaplicar o teste vocacional, colocá-lo no lugar adequado e esperar que ele adquirisse a experiência que consuma o talento. No entanto, esse procedimento lento seria compactuar com a incompetência, o que um chefe jamais pode fazer. A empresa não é lugar para filantropia, e o empregado sem resultado tem que ser mandado embora o quanto antes.   

Um mínimo de velocidade é imprescindível. O mau desempenho retarda não só um, mas todos os trabalhos. Como o tempo não perdoa nunca, os outros também têm contas que vão necessariamente vencer. Assim, o ranço que inspira a Tuba - essa ideologia dita rígida, retrógrada e individualista - é o único capaz de manter o ritmo da história. Se, porém, alguém disser que o melhor é uma espécie de utopia coletiva onde a medicina já não será imprescindível, onde os advogados já não serão úteis, porque não haveria necessidade de curas nem de defesas, onde, enfim, o mal já não existiria, e a verdade brilharia sem a luz da retórica, a única resposta é essa: essa futurologia é um passado chamado de idade de ouro. Nela, os poetas cogitavam que não existiria sequer guerra. E é para esse paraíso que também os progressistas felizes se deixam levar pela mão.


sábado, 7 de janeiro de 2017

Sobrevivendo em Meio às Exigências Necessárias

"A arte da invisibilidade precisa ser aprendida antes da arte da visibilidade. A maioria das pessoas compreende essa lição do jeito mais difícil." Jim Grote e John McGeeney, empresários e autores de Espertos como Serpentes - Manual de Sobrevivência no Mercado de Trabalho.



Não devemos ter raiva de nossas cozinheiras. As coitadas, se são competentes, têm mesmo que parecer muito sérias e exigentes. Elas não admitem que mesmo o melhor dos meninos, aquele que sempre faz bem o dever de casa, seja premiado antes do almoço com uma uva. Sem dúvida, essa afirmação parece tirada do nada. No entanto, ela tem base na teoria do bode expiatório. O seu âmbito é uma crise em que há um bem que não pode ser compartilhado.  O primeiro ponto é que as crianças, ainda que não o saibam, têm um desejo mimético. Dito de outra maneira, se um primeiro prova o fruto da videira, todos os demais vão sentir fome, ainda que não façam jus à recompensa. Não há, como sabemos, uma proporção entre o gosto pela iguaria e a quantidade na bandeja. Como o desejo não deixa de ser sentido como necessário por ser mimético, eles tomariam como uma injustiça o não receberem o suficiente do aperitivo. O desfecho já é um tanto arbitrário. Pode acontecer, então, que as crianças briguem entre si, ou que uma boa cozinheira seja o alvo da indignação pueril. De qualquer maneira, há a possibilidade de uma tragédia quotidiana que, embora fosse um fato, não seria tão verdadeira quanto a melhor ficção.

Além disso, o desejo aumenta se foi proibido. Isso faz com que a espera pela comida a torne mais apetitosa. Assim como essas boas senhoras, as instituições, para sobreviver num mercado competitivo, tem que fazer as suas vítimas. Esse fator, por sua vez, promove que ela seja vista como um modelo da melhor das excelências: a inacessível. É difícil encontrar uma propaganda mais eficaz para conseguir empregados saudáveis e bem dispostos. Portanto, ainda que todas reuniões metafísicas deixassem de falar do sacrifício, ele por isso mesmo estaria mais presente. Para que talvez algum leitor finalmente ache que não é inútil vir até aqui, vão aí algumas dicas sobre como não ser um dos que têm a triste razão de reclamar.

As empresas em geral rejeitam quem tenha um problema teórico com a autoridade. Se você brigou com seu chefe anterior e ainda acha que estava certo, isso não interessa. Se, na prática, você não dá resultado, não adianta se justificar. O melhor é assumir a culpa com uma sugestão objetiva de melhora. Desabafe com um amigo, mas não com um mero colega nem na entrevista do próximo emprego. Aí o jeito é ser sincero e não se desesperar. As boas empresas tampouco admitem quem é muito competente na área técnica, sabe disso e acha, portanto, que estaria apto a um cargo de gerência de pessoas. Em regra, não está, e a exceção muito notória também tende a ser expulsa. O reconhecimento não é uma questão só de mérito.

As bancas de advocacia não aceitam os escrupulosos não positivistas. Se um rapaz é estudioso, mas acredita num direito natural que não é tomista, ele quiçá considere que o divórcio não é defensável nem para os ateus. No entanto, quem não é defensável talvez seja ele. O caminho é desistir de argumentar para o juiz que segue a jurisprudência da maioria, virar padre se houver vocação ou ir atuar junto a Cúria, onde estão os que entendem os pressupostos do assunto.

As universidades são um problema mais delicado. Antes de mais nada, vamos distinguir as humanidades do resto, que eu não conheço nem de ouvir falar. Naquelas, se há uma metodologia própria do departamento, não adianta ter como referência um intelectual favorito se ele for ignorado.
Não importa, a rigor, se as suas ideias não foram logicamente refutadas. Ademais, não convém no começo fazer uma pesquisa com mistura de vários assuntos. Isso, em alguns círculos fechados, não é sequer concebível. A interdisciplinariedade é o topo da pirâmide, o que significa que pode até ser feita, mas seus praticantes tem que ser em número muito reduzido. A cruz da consciência, porém, está na ideologia, sem a qual é impossível viver. Não ter vergonha de alardeá-la, por mais fundada no senso comum que seja, é abrir o flanco para uma acusação de instrumentalizar o que para alguns é o sindicato mais imprescindível. Ou o estudante abre mão de suas convicções pessoais, ou abrirão mão dele, por mais genial que seja. Dar a vida pelas palavras certas, no entanto, ainda é dar um exemplo de honestidade. René Girard agiu assim, teve que responder com diretas a indiretas e depois entrou numa glória que não é só do outro mundo.

A Academia de Letras não acolhe quem não tenha feito do seu meio de vida a escrita e não seja o Sarney ou o Ivo Pitanguy. Parece improvável começar um profissional liberal e, quando chegar a aposentadoria, ainda ter o tempo para se tornar um mestre do estilo. Desde algum tempo no Brasil, cultura de fato é uma profissão. No entanto, também nessas plagas sucesso ainda é uma soma de talento e sorte. Ao mesmo tempo, não adianta só ler e imitar o que há de mais belo sem ter uma visão própria a levar ao grande diálogo. Só macaqueação não é arte ou, como diria um amigo meu, a musa não tá só na praia. Ela habita também o escritório.

quarta-feira, 14 de dezembro de 2016

Uma Barroquice



Na segunda-feira, um de nossos fantásticos colaboradores não apareceu na redação. Feitas algumas ligações, que no momento foram tidas como urgentes, foi descoberto o seu paradeiro. No domingo, ele tinha cantado uma serenata em frente a casa de uma mulher negra, pela qual havia se apaixonado num samba de periferia. Na manhã seguinte, teve que ficar na cama. Ela, porém, estava resolvida a não abandonar a sua solidão por nada desse mundo.  Desencantado mas tranquilo, ele então lamentou a dor dela da seguinte maneira.

A rainha de Sabá hoje mora
acompanhada só de seus felinos,
lá bem longe, onde esse sino que dobra
já perdeu o que tinha de sombrio.

Como a alba, que pouco se demora
e cede passo logo à luz de estio,
o que há de belo nela desmorona,
em flagrante contraste com o Rio.

A cidade, intacta, permanece,
enquanto ela dentro se desloca
- como a rosa que vive e fenece-
Entre a vida e a morte que não choca.

O calor de tudo sempre arrefece:
da rainha, da flor ou da aurora.

sexta-feira, 11 de novembro de 2016

Um Pedaço da Memória de G. K. Chesterton








O desejo mimético mostra que ao tentar destruir o outro, o que queremos é impedir que ele conquiste o bem cuja beleza nos encantou. Não se trataria, portanto, de uma má ação, mas sim de um meio imprescindível para a eficácia. Há, porém, uma maneira de falar mal que é como música. E uma dessas canções oníricas, que termina bem depois de um início estranho, é a que canta Chesterton quando diz que os americanos são antiquados. Empunhando a espada da ironia, ele assim corta os seus leitores em dois: só aqueles que entendem que o próprio Chesterton defende causas tão veneráveis quanto o começo do mundo riem. Ser antigo é absolutamente necessário. É uma delícia olhar para trás e rememorar a época em que a atenção da mídia estava voltada para um só ponto. E aí estava justamente o próprio Chesterton, o que mostra não ter ele cedido à falsa humildade de não falar de si mesmo em público. Ao contrário do que alguns acham, Chesterton é tão extrovertido quanto Mr. Micawber.
 
Mas esse passado, como a origem girardiana, é violento. Nele o autor do relato se lembra de um empregado de um jornal americano cujo estilo era diferente do seu. Segundo Chesterton - o duplo que é ao mesmo tempo narrador - a América é a terra da propaganda, e isso influenciaria a redação dos periódicos. Alguns acham que isso deveria ter sido dito literalmente, mas a letra não importa. Sem nenhuma dúvida, ele identifica os americanos com os chineses, uma vítima antiga do Império Britânico. Surge, porém, uma saída para a crise mimética. Chesterton admira Nathaniel Hawthorne pela sua técnica e Walt Whitman pela sua força e sinceridade. Eles, porém, não são conhecidos pelo jornalista cogitado, cujo modelo é antes algum autor famoso de comerciais televisivos. Se a mediação externa não é comum, os duplos se aproximam... e o combate começa.

Contra as ideias contidas nos jornais, Chesterton afirma que o homem é livre e que toda a futurologia é uma inversão da prudência e uma selvageria. Isso é evidente, mas alguns se preocupam com a previsão do PIB, cuja cientificidade é atestada pela precisão numérica. Eu também me preocupo com isso, já que menos dinheiro pode significar menos lazer e menos cultura. E a precisão matemática, que é o prêmio da disputa, cresce até ocupar todo o campo da visão. A ciência não é infalível, mas algumas vezes ela posa como se fosse. E, para conseguir uma aparência de credibilidade, ela se adorna com o atributo da quantidade exata. Não importa qual é a diferença específica de um átomo de carbono, uma questão sobre a qual é impossível falar por mais de um minuto. O que importa é quantos elétrons ele pode ter, e isso qualquer pessoa prática entende. Essa precisão, no entanto, pode ser desviada para fins sinuosos, como quando se tira uma estatística da manga para provar que o número de ateus tem crescido. Isso, obviamente, não leva em conta a tendência indígena ao drama e a portuguesa ao fado. Que Deus tenha morrido é algo triste e belo, e confere uma aura de Fernando Henrique Cardoso a Jair Bolsonaro.

Toda essa batalha, no entanto, pode ser vazia e terminar numa festa. De fato, Chesterton não tem certeza sobre a verdade do relato do jornalista. O objeto da discórdia, porém, existe. Ele percebe e o diz com toda a clareza: não há identidade entre o que ele sabe que a ciência é desde há muito tempo e o que vai impresso com as letras do prestígio desde outro dia, quando Gutenberg inventou a imprensa. No entanto, é essa imagem falsa que se espalha, e a democracia pode ser enganada. Chesterton termina com elegância e faz com que o clima volte à tranquilidade. Ele já tinha feito algo parecido ao forjar um adversário hipotético como quem não deseja entrar em conflito com nada que seja mais que um pesadelo. Agora, o seu toque de mestre é se identificar com a sua vítima de tal maneira que ele se torna o seu modelo através da maioridade do desejo. Ele também prevê um futuro - não só, porém,  como quem faz ciência, mas sim com toda a intensidade de quem enuncia uma profecia terrível. Todavia, por trás da seriedade de uma maldição, lateja sempre um afeto.

"Eu acredito que a terra gira em torno do sol; mas eu não mais acreditarei se Thomas Edison afirmar que aço e concreto girarão em torno da terra. Se você nega o que os homens sabem à luz do que eles não sabem, eles simplesmente resistirão à ciência de uma vez por todas; e a grande obra do século XIX será perdida por séculos."

segunda-feira, 24 de outubro de 2016

As Duas Democracias



Os matemáticos são pessoas tão focadas que perdem a capacidade de ir de um conceito para o vizinho. Nas ciências humanas, porém, dançar entre a etimologia e o significado é uma habilidade sempre a ser conquistada. O termo democracia, por si só, não diz mais que o governo da maioria. A maior parte do movimento democrático atual, porém, sonha como uma espécie de técnica social que substituiria o significado de poder do povo pela garantia de que os grupos diversos não se aniquilem uns aos outros, mas acabem com qualquer maioria.

De fato, ninguém apela para o critério quantitativo, que ganha vida nas assembleias dos cidadãos, onde a posição que contava com mais votos, fosse ela qual fosse, seria a aceita. E o Olavo de Carvalho também não o faz porque ele não é bobo. E também, imagino, porque a verdade é que há muitas razões para abandonar a ditadura da superioridade numérica. Talvez as melhores são para que as diferenças, que não são más em si mesmas, sejam respeitadas e para que a sociedade seja preservada como um espaço de convivência que não se reduza à mera concordância. Alguém precisa escrever ou me indicar um estudo liberal sobre esses fatores. Uma opinião, no entanto, é impossível. Se a conclusão mostrar que de fato a maioria é uma opção superior à tecnocracia, quase ninguém das humanidades o levará a sério.  E a razão da turminha eu já dou aqui, porque é tão fácil quanto qualquer tautologia: um governo não científico, gente, não é científico.